Via rápida


Eu não tenho mais medo de atravessar a rua. Eu mudei para um condomínio que fica numa via rápida, eu a atravesso todos os dias, várias vezes, fora da faixa, longe do sinal, e eu nem preciso mais sentir que tuas mãos estão comigo. Eu não olho para os dois lados, eu só tenho olhos pra você e cabeça para suas esquisitices. Eu vivia dizendo que eu queria alguém normal, até perceber que eu não sou tão normal quanto achei que fosse. Você é quem preenche minhas loucuras, a gente fica analisando a vida, o tempo, as despedidas das pessoas no shopping, os casais no cinema, as amigas no teatro, a gente sempre pensa coisas muito loucas a respeito dos outros, e a gente vive coisas esquisitas.

Eu revi com você filmes que tinha vista com quem já passou e tudo fez um sentido completamente diferente, eu nunca te deixaria como a menina do Apenas o fim. Se um dia eu te deixar aposto que vou escrever tanto sobre, até decidir ficar e terminar a nossa história com reticências. A gente adora praia no inverno e foge do sol para ficar sempre com a pele branquinha, e a gente gosta do contraste dos nossos cabelos pretos, das nossas olheiras porque passamos a noite procurando filmes independentes pra gente assistir. A gente lê junto, a gente interrompe a leitura um do outro para comentar a história alheia, como se não fôssemos trocar de história no final.

Eu não costumo te escrever, por trauma do passado, mas eu vivo você. Eu gosto da sua mania de nunca discordar absolutamente de mim e logo depois me provar que eu estava errada. Eu gosto do jeito delicado de você dizer que minhas paranóias vão além do que você pode suportar. Eu gosto quando você me chama, quando grita na minha janela pra abrir a porta do bloco, e o modo como isso não impede você de chegar à minha casa de surpresa e me ver enrolada num lençol colorido, e não rir disso, e achar isso normal e querer se enrolar comigo.

Eu adoro seu jeito estranho de escolher roupa, eu adoro suas roupas sempre azuis, brancas e pretas, eu adoro quando você admite que por mim vestiria até vermelho, no nosso casamento, que vai ser vermelho, preto e branco. Eu adoro você que se permite viver coisas e que me leva a viver outras tantas que jamais imaginei. Adoro sua disposição pra assistir filmes na Cinemateca, pra ver peças baseadas em autores que você nunca leu, para descobrir bandas “que eu vou adorar”, e eu gosto disso porque você me conhece tanto, porque somos tão iguais, porque somos dois, e quando a gente está junto a gente é um, e pede um café, e toma remédio para alergia, para ver se a gente acorda mais tarde, e fingimos que esquecemos aquele compromisso com teus primos.

Eu adoro quando você topa minhas loucuras, quando você me leva para casa, quando você me leva para casa e ainda me escreve perguntando se eu cheguei bem. Eu adoro como nunca esquece de me escrever, mesmo que eu não responda. Eu respondo bem baixinho, eu sussurro, eu me declaro em silêncio de noite, e você responde “eu te adoro também”. Eu me pergunto como você sabe, você diz que sabe interpretar os meus silêncios, os meus olhares, o meu não-sorriso. E você advinha quando eu quero ir embora dos lugares sem eu nunca precisar pedir. Você já decorou meu pedido naquele fast-food, e a gente pensa sempre igual, eu te compro uma revista, você me compra pó de café com hortelã. A gente vai pra casa experimentar o café e ler a revista, eu não preciso te pedir beijo na chuva, blusa pra me cobrir, toalha pra me secar, eu não preciso te pedir nada. 

Às vezes me pergunto com quantas será que você se envolveu antes de mim para desenvolver essa habilidade toda de adivinhar o que quer uma mulher? E você nunca me deu flores, e eu nunca falei de flores pra você. Eu não tenho mais medo de atravessar a calçada, de mudar nossos rótulos, eu não quero mais ser normal. Eu quero ser diferente com você que não é igual a ninguém mais.

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