Lembrança 2

Era verão. 2003. Faz 14 anos. O que quer dizer que eu tinha 15. Eu lembro exatamente a roupa que eu vestia. Um short e uma camiseta. Extremamente despretensiosa, diferente das primas e irmãs adolescentes sempre muito bem produzidas e arrumadas, mesmo na praia.
Meu irmão, com 18, tinha saído para buscar seus amigos que ficariam conosco na casa da praia da vó. Do ano novo até o carnaval. Naquela época eu era só aluna e podia juntar uma data na outra. Sem pais na casa.
A noite era de chuva. Tempestade. A luz havia acabado. O carro ilumina o portão. Os meninos chegaram. Eu não os conhecia. Eram alunos do colégio militar, mais velhos. Eram 3. Entre eles apenas um, era realmente despretensioso. No primeiro cumprimento o toque dele me estremeceu. O olhar dele mexeu comigo. Na minha falta de autoestima adolescente achei que tinha entendido errado. Afinal, estava muito escuro, poucas velas e a luz do carro devem ter alterado a percepção dele.
Na realidade, a minha é que estava errada. Na primeira semana, nossas conversas já haviam se entrosado. Sempre gostei de caras que fogem do clichê de conversa: futebol e carro. Ele era assim. Nada clichê. Mais tarde eu descobriria que era menos clichê do que eu imaginava. Algumas noites ele ficava em casa comigo e minha vó, mesmo quando todo mundo insistia pra que ele saísse.
A regra na vó era: meninos no quarto de trás, meninas no quarto da frente sob sua supervisão. Truco. Bebida. Cigarro escondido. Churrasco. Um looping infinito de alegria adolescente. A gente passava as tardes conversando, jogando truco, escondidos atrás das pedras da praia.  Ele dizia não pra bebida e pro cigarro, pra mim ele nunca dizia não. Infelizmente, eu disse não a ele, tempos depois. E a regra da vó era só pra hora do sono. Então, uma noite, pouco antes do jantar, fomos “flagrados” deitados juntos num colhão de solteiro – sem nada demais- meu irmão fez um escândalo, por isso resolvemos não falar nada e disfarçar o máximo possível.
Ele foi o cara mais incrível que eu conheci. Mesmo hoje anos depois, ele é um dos caras mais maravilhosos que passaram pela minha vida. Ele me fazia rir. Ele me fez sentir coisas de pele sem precisar me tocar. Ele me respeitou como indivíduo. Cada uma das minhas vontades. Inclusive a final.
No carnaval, meu irmão, que nada sabia, vivia dizendo que ele havia ficado com alguém. Cada noite, meu irmão descrevia uma mulher diferente. Eu não me importaria, mas sabia que não era verdade. Ele não podia ficar todas as noites comigo, era preciso equilibrar já que “não sabemos onde isso vai dar”. Dizia eu no alto da minha pseudo sensatez, disfarçando o medo de me entregar, me apaixonar e ser feliz. A gente ouvia quase sempre antes de dormir o cd do Jota Quest (Discotecagem Pop variada) – que eu nem gostava – mas valia por ele. E hoje se eu escuto alguma música daquele cd, me vem toda nossa pequena histórica romântica à mente. E cada música faz sentido.

“Eu vou falar de amor como eu falava antes 
De um jeito simples, que antes parecia louco 
De uma loucura muito boa, das coisas que eu sentia antes 
Antes que eles dissessem que eu estava ficando louco 
É, eu sou assim, um cara meio tonto 
Eu fico tonto só de ver que alguém já está ficando tonto 
E tento ajudar a todos os que ficam tontos 
E assim quem faz papel de tonto sou eu mesmo

Ele cantava pra mim.
O carnaval havia acabado e voltaríamos pra nossas rotinas.  E a gente ficaria no passado. Amor de praia não sobe a serra.
O nosso subiu. A gente se falava sempre. Ele ia me buscar na escola. Antes dele ir pro estágio. A gente almoçava. Se curtia. E ia pras responsabilidades da vida. À noite voltamos para nossa ilusão de paixão. Ele me conhecia. O primeiro presente que ele me deu foi o livro “Estação Carandiru”. O segundo um cd do Face da morte. Eu amava aquilo. Mãos dadas. Olhos nos olhos.
Um dia passamos a tarde na casa da bisavó dele. Eu nunca me esqueci. O passeio pelo quintal, florido. As risadas. Os olhares. As mãos se entrelaçando. A gente piscava lento. Aquilo foi tão importante. Ela sentada me falando sobre ele. Aquele cara incrível que tinha cruzado meu caminho. A bisa dele foi a única que soube da gente. Ela e minha estante que ainda guarda o livro com dedicatória. A mais linda de todas que eu recebi. Naquela tarde ele quis oficializar tudo. E eu disse não.
Demorou pra que a gente aceitasse esse não. Demorou pra que eu aceitasse novos convites pra churrascos do meu irmão. Eu demorei demais pra entender que ele não era como os outros que tinha aparecido. Ele era diferente. Ele ainda é. Talvez ninguém ter ficado sabendo do que houve foi o que permitiu que ele continuasse até hoje muito amigo da família.
Casado. Com filhos. Emprego de mais de 44 horas semanais. Isso foi o que ele sempre quis. E ele merecia. Eu nunca quis. Eu continuo não querendo. Talvez tenha sido o não mais sincero da minha vida. E o que eu mais me arrependi também. Para os outros eu disse não porque eram ruins, pra ele porque ele era muito bom.
Ninguém faz boas escolhas aos 15. Ele já tinha 19. Mas poucas pessoas fazem boas escolhas aos 19.
Do cd do Jota Quest, depois do fim, algumas músicas faziam mais sentido que outras:


“Viva todo o seu mundo
Sinta toda liberdade
E quando a hora chegar, volta...
Que nosso amor está acima das coisas desse mundo
Vai dizer que o tempo
Não parou naquele momento
Eu espero por você
O tempo que for
Pra ficarmos juntos
Mais uma vez”
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