Exceção

No que estou pensando

Não poderia esquecer o que disse a ela, na última conversa. Algo como "se um dia você conseguir perdoar um idiota, ligue pra mim". Não é fácil dizer esse tipo de coisa, a mais pura verdade. Eu fui idiota, sou ainda, quem sabe pra sempre. Coisa que pode ser vista como positiva, quando você se relaciona com um, drasticamente diminuem as chances de desapontamento. Ou seja, aquele papo de que todos têm seu lado bom, e talvez o meu seja esse. E talvez só esse.

Ela deve ter entendido bem o resumo que fiz de mim mesmo, porque me telefonou do escritório. Minhas pernas sambam involuntariamente quando ouço o timbre da sua voz. Não queria aquela como "A-Última-Conversa", possivelmente porque quem foi embora fui eu. Todas as mulheres que conheci não suportam a sensação de ser largada, mesmo que estafada pelo excesso de companhia ou pela escassez de encanto, aquele combustível que elas precisam pra terminar o dia bem. Faça um último favor a elas: seja abandonado e generoso, passe a palavra pra que ela possa dizer que acabou.

Bem, foi o que ela disse - acabou. Pronto, mais aliviada? Perguntou se eu ficaria bem e tal. Resmunguei alguma coisa. Dizem que quando você morre, seu corpo perde 21 gramas, mas o gozado é que senti subtraindo de mim uma vida inteira. Aí ela disse algo sobre o céu, do quanto ele é, na realidade, intocável. Existe um ponto na subida pra tocá-lo com a ponta dos dedos que você se perde, sabe? E quando vê, alcançou o vácuo, a escuridão, o vazio, aquele espaço onde as dúvidas não têm mais justificativas. Vocês concordam em ir longe, e acabam longe demais.

Ela disse que há tempos sabia que não tinha jeito, mas ia empurrando com a barriga mesmo assim. Eu, silêncio. Ela disse que poderia ser apenas um intervalo para reflexões, não sabia, acontece que o tempo falha e a culpa acaba caindo sobre nós - no amor não existe uso correto da vírgula. Eu, silêncio. Ela falou mais montes de coisas, das quais me lembro muito pouco, mas sei que nada fazia muito sentido. Eu, silêncio. E ela, vamos lá, me diga alguma coisa, no que você está pensando?

O que estou pensando? Bem, o que estou pensando. Pra variar, em coisas discrepantes com tudo que você fala sem parar. Estou pensando que essa conversa vai me render um câncer no cu daqui umas semanas. Pensando nas vezes que lambi os dedos do seu pé no escuro do edredom em noites esfomeadas. Pensando naquela vez que discutimos por conta daquele episódio de "Friends" que o Ross dorme com a garota do xerox e a Rachel descobre e fica puta, lembro da sua opinião poderando que eles realmente estavam dando um tempo e isso me deixou puto. Nas vezes que fiz você levantar ranzinza às sete das manhãs de sábado pra me abrir a porta.

No que estou pensando? Naquela interminável semana que sua menstruação falhou, e nas perguntas retóricas tipo "o que a gente vai fazer agora?" Pensando no dia que descobri que você curtia McFly e a minha decepção. Nos dias que não passávamos de amigos. Nas vezes que te deixei falando sozinha. Nos cheiros que você me dava no nariz, nos beijos que dei nos seus olhos. Nas suas sandálias pela casa, nas minhas toalhas molhadas sobre a cama. Em quando você prendia o lábio inferior com os dentes, tentando não sorrir porque achava que não devia estar sorrindo.

Dizem também que quando a gente morre, um filme atravessa seus olhos em poucos segundos e vai ver é por aí. Só estou pensando que a gente está deixando o amor escoar pelo esgoto, e essa conversa é uma espécie de azulejos claros, floridos e bonitos mascarando pra onde vai essa merda toda. Só estou pensando: por que mesmo um casal acaba?

Nada, nada, nada, nada, nada. Não estou pensando nada. Tenha uma vida boa. E não se sinta confortável em sair e entrar como se a casa ainda fosse sua, como se fosse difícil carregar tudo de uma só vez. O mais pesado você já levou.

Texto de Gabito Nunes, autor do blog @carascomoeu

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