Enquanto ele dorme

Ele está deitado. Dorme. Isso não me incomoda. Dormir depois do sexo é um clichê saudável. Eu gostaria de estar dormindo também, mas alguma coisa em tudo que houve hoje me lembrou você. Ele dorme exibindo essas tatuagens que eu tanto gosto, com o cabelo longo extremamente bagunçado, e eu me sinto culpada por estar te escrevendo. Mas eu preciso. 

Ele não é nada sério, mas também não é alguém que seja dispensável. Ele me atrai. Ele me entende. Ele me faz rir. Ele me dedilha como ninguém. Arranca de mim notas de suspiros agudos que ninguém nunca arrancou. Nosso caso é grave. Agravo de instrumento. 

Ao dele da cama - porque ele já tem um lado - no chão está a biografia do João Gordo e do meu lado, a autobiografia da Rita. A gente trocou presentes e precisou ser antes do Natal. Trocar no Natal é assumir um compromisso. E compromisso não é com a gente. A gente se comprometeu a ser feliz e a tentar fazer o outro feliz enquanto as duas coisas juntas forem possíveis. 

Eu precisava te escrever. Não há um pedido de desculpas. Não há saudade. Só um desejo de saber como você anda. Se conseguiu sobreviver a nós. Eu mudei tanto e foi depois de você. Eu nunca mais soltei um "eu te amo". Eu nunca mais enviei um texto pra ninguém. Eu nunca mais beijei como o Homem Aranha e a Mary Jane. Eu nunca mais enviei músicas e gravei uma trilha sonora ou fiz uma playlist romântica. 

As músicas minhas e dele são todas pra nossa hora. Eu adoro cada uma delas, são intensas, são excitantes. Quando eu falo assim, parece que eu e ele é só físico, mas não é. Ele tem algo que me prende, pelo olhar, pela mão, pelo riso. O olho dele fica pequenininho quando ri. Ele me deixa leve. Eu sou com ele quase o melhor que eu já fui com você. Não acho injusto com ele. A gente é assim. Eu sei que vai ter um dia que ele não vai voltar. E eu vou precisar me livrar do cheiro dele no travesseiro, trocar o sofá. Mas quando ele for embora eu estarei preparada, eu vou ter me despedido, porque cada dia pode ser o último. 

Com você não. A gente não sabia que era o último beijo. O último domingo dividindo o sofá. O último cinema. A última refeição. Desde que você foi embora e disse adeus da maneira mais fria possível, eu comecei a sempre esperar o fim. E ele sempre chegou. 

Eu não quero adiantar as coisas por aqui. Vê-lo dormir e poder abraçá-lo é seguro. Porque eu não me ancoro. Eu sou um barco a navegar. Hoje minha maré é ele. Na outra lua ela pode virar. Pra mim. Pra ele. 

Te escrevo pra dizer que estou bem, mas já não sou quem fui contigo. Oito tatuagens a mais e muito medo de nunca voltar a amar. 

Vou dormir. Me enrolar nos braços dele que nunca me prometeu ficar, que eu nunca pedi pra não ir, mas nunca me deixa a esperar e volta mesmo quando eu acho que vai partir. Além disso, amanhã a gente trabalha e pra dar tempo do café não podemos nos atrasar. 


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