Não deixe seu café esfriar

Para escrever, preciso de um café fumacento. O primeiro surge pela manhã, e então é como se recebesse um abraço caloroso quando o líquido preto invade com graça os vãozinhos horizontais tão brancos do copo de plástico. Em casa, quem tem vez são xícaras de alças grandes. Dia desses reparei que tenho uma coleção delas. Há uma do meu time preferido – a essa altura do campeonato não vale a pena mencionar qual é –, estreita. Outra é verde por fora e azul por dentro. Feia essa, quase não uso. Uma outra, toda preta, é marota e esconde o perigo. É que, súbito, o café se confunde com o interior do recipiente: penso que há menos e queimo a boca; sinto que há mais e não há nada. Tenho de olhar para o fundo para conferir se o vazio já chegou. No meio do processo, porém, os óculos embaçam. E então realmente não distinguo uma coisa da outra.

O fato é que constatei e estou pronto para assumir: tenho um vício. Pois sim. Terríveis, insuportáveis, malditos, são os feriados em que trabalho no jornal. Não pelo dia em si – claro que preferiria estar em uma praia a escrever algumas mal-traçadas, mas o fato é que adoro o que faço –, e sim pela ausência insubstituível daquela garrafa corpulenta, que estampa em letras convidativas: “café amargo”.
 
Já aconteceu, em plantões de feriados ou de finais de semana, de levantar em busca do líquido renovador, sagrado, e dar de cara com uma mesa triste e vazia, em que só o açucareiro e a toalhinha são testemunhas. Nessas horas viro uma espécie de sonâmbulo desperto. Imagine alguém com os braços esticados em direção à mesa sobre a qual deveria (deveria!) estar o café.
 
Deve ter acontecido também o seguinte. Sentar-me em frente ao computador e, ato-reflexo, esticar o braço direito em busca do copo fumegante. O café tem seu cantinho, como não. Fica ali, entre a divisória de madeira e o mouse. Tudo planejadinho.
 
E, veja, alguns copos se rebelam. Não sei se porque os ignoramos frente às tarefas do dia. Notei: os cafés que fogem do copo são sempre os frios. E aí dói. É uma lástima vê-lo ganhar vida rapidamente e acompanhar seu percurso por toda a extensão da mesa, enegrecendo papéis, se infiltrando devagarinho por debaixo do teclado, deixando marcas, cheiros. O conselho é: nunca deixe seu café esfriar.
 
Também noto suas alterações de humor. Há algumas quartas-feiras, Ele (a essa altura já cabe uma distinção), estava fraco. Como se tivesse sido coado duas vezes, o pobre. Não sei. Percebi logo pela cor. Era um preto turvo, indefinido. Sem graça. Tomei rápido, antes que esfriasse.
 
Mas, como desse a volta por cima, numa sexta-feira pra lá de corrida Ele surgiu portentoso, em seu melhor traje. Parecia até feito daqueles grãos especiais, limitados, cheios de tabelinhas e nove horas. O copo, coloquei no cantinho propício – arrumei a papelada para evitar maiores problemas –, e Ele me acompanhou, firme, durante uma matéria inteira. Nesse mesmo dia foram mais dois copos. Na verdade um, porque os encho pela metade. Agora a xícara toda preta me olha e o café vai esfriando, em silêncio traiçoeiro. Melhor acabar logo com isso.

Texto de Cristiano Castilho - Publicado na Gazeta do Povo Online

3 marginálias:

  1. Nunca deixo o café esfriar! Sou, literalmente, viciada em café - a qualquer hora do dia, seja de manhã quando acordo, a tarde quando trabalho, ou a noite quando chego em casa. O café é o meu energético diário! ;D

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  2. Oi, tudo bem?

    Tenho que admitir que não sou viciada em café, mas sou sim viciada no seu blog, tem sempre alguma reflexão maravilhosa.

    Parabéns!

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  3. viciada, não! mas gosto de tomar café ás 09:00 da manhã. Só pra lembrar que o dia já começou.

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