Sinto falta dele, até quando ele está aqui

Sinto falta dele com violão tão antigo na mão, com as cordas velhas, cantando qualquer música que ele mesmo tenha feito e que eu sou a primeira a ouvir. Sinto falta, embora ele esteja aqui, do meu lado agora. Sentado em frente à tv, assistindo ao telejornal. O violão empoeirado no quarto dele, junto com tanta coisa daquela época que não volta mais. Quando a gente escapava da aula, ia para o parque à noite e ficava lá, filosofando sobre amor, pessoas, a gente, e cantando.

Só as estrelas eram testemunhas daqueles momentos. Hoje todo mundo sabe e todo mundo vê que a gente está junto, embora a maioria não entenda nem como, nem quando, nem onde, e criem teorias sobre o porquê. Eu, que tenho escritos leads e leads*, não sei como iniciar o parágrafo dessa narrativa. Que de tão pura deveria começa com Era uma vez. Como todo mundo eu fui deixando algumas palavras para trás, ele foi deixando algumas atitudes, e assim fomos nos encaixando, entrando no mesmo ritmo, eu desacelerando e ele acelerando um pouquinho, pra não me deixar ir muito além, sozinha. Agora a gente toca a mesma sinfonia: a do silêncio. Eu silencio e ele entende. O inverso de tudo que aconteceu pra nós dois, todos os relacionamentos que eram só barulho, gritos, choros e risos maldosos, um silêncio cúmplice. É no silêncio que a gente diz o que tem medo, eu de escrever, ele de cantar. Ele canta outras histórias, eu escrevo outras narrativas, e nunca somos os personagens. Há ficção demais nessa realidade.

Eu não pronuncio a palavra amor, ele não canta que é pra sempre. A gente se gosta, a gente tem um compromisso, o compromisso de ser até quando se é, e quando não se for mais, deixar de ser da maneira mais digna: sendo. Complexo? Ele entende. Ele me entende, acima de tudo. Conhece meus traumas, respeita meus medos, mas não rege nosso relacionamento por eles. Cada dia é como vencer um medo: de altura, de aranha, da madrugada, do futuro, de amar, de ser amada, de ser feliz.

Eu sinto falta de como a gente era, quem eu era, quem ele era, quem éramos juntos. Mas adoro chegar em casa e às vezes ter o café pronto. Adoro ir pra casa dele na sexta, fazer uma janta pra nós dois. Adoro descansar, ler, e não fazer nada com ele. O violão está quieto, mas nosso coração bate e é pleno carnaval, a gente que só ouvia rock, dorme ouvindo samba da velha guarda, a gente mudou muito, mas mudou junto.

Eu não sei se ele ainda sabe tocar as mesmas músicas, mas continua me tocando como nunca. Dedilhando meus cabelos, ele consegue tirar de mim a melodia mais doce. O silêncio mais poético. Por vezes eu o olho da cozinha, sentado no sofá assistindo algo, e penso: Até quando eu vou conseguir ser feliz, sem me sentir culpada? E aí ele percebe que eu estou olhando e me sorri, e percebo que essa felicidade também é merecimento, nós dois já choramos muito. E nesse instante o que eu mais quero é fazê-lo feliz, exatamente como ele me faz. E isso não precisa de nome, só precisa da gente, e isso a gente já tem.

Luana Gabriela
Março 2011


*lead – técnica jornalística de contar no primeiro parágrafo as informações mais importantes. Quem, quando, onde, como, por que.

10 marginálias:

  1. O amor transforma, metamorfoseia, e inevitavelmente, nós também.

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  2. Renata disse:
    Esse texto é um dos mais perfeitos que já li.
    Luana,que lindo tudo que vc escreveu!!

    Eu adoro quando falas de amor,mas desse amor cotidiano.O amor detalhado,com gestos de carinho.
    Descreve encantadoramente cada momento...

    Ameii!! Parabéns!
    :)*

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  3. Que belo!SE dúvida alguma o mais belo que já li por aqui,me tocou de uma forma surpreendente!

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  4. Que belas palavras.
    Amei!
    Beijos meus e um bom final de semana pra ti!

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  5. Muito bom!Sem palavras o dia a dia nos faz perder momentos que queriamos que fosse eterno,mas mesmo não os tendo mais seremos felizes se estivermos juntos de quem um dia nos fez feliz!

    Ameiiiiiiiiiiii
    Juliana leitão

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  6. Muito bom!Sem palavras o dia a dia nos faz perder momentos que queriamos que fosse eterno,mas mesmo não os tendo mais seremos felizes se estivermos juntos de quem um dia nos fez feliz!

    Ameiiiiiiiiiiii
    Juliana leitão

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  7. extremamente real e verdadeiro esse seu texto! que coisa boa é saber viver! viva esse instante desta forma tão intensa!!!

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  8. Achei tão bonitinho o modo como você explicitou o que acontece quando nos acostumamos, isso é a realidade, a rotina, e a ausência mesmo quando o que faz falta continua ali, mas é uma questão de saber amar.

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  9. Arrepiado aqui, ouvi ao som de 'Senhor e Senhora" dos Titãs, mas logo me veio algo como " eu posso arrumar a mesa e te servir o jantar" do Skank! :)

    Isso é saber amar, Lua. Você sabe!
    :)

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  10. O bom é se transformar junto e ser feliz exatamente assim.

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